Dia 2 - Marrocos

Dia 2 - Marrocos

O dia por todos falado havia chegado. Este era finalmente o dia que tanto se planeou. Um dia apenas para tentar ter um vislumbre de uma realidade que nem por sombras poderíamos ter ideia que existia.

Começou desde cedo, direi até desde o dia anterior, devido a muitos de nós começarmos a acusar o cansaço sentido depois do baptismo de off-road... Colocou-se no ar a questão se não teríamos “mordido mais do que conseguiríamos comer”. É que para poder viver a verdadeira emoção de atravessar a imensidão do deserto e sentir a verdadeira ligação com os elementos sobre as nossas máquinas, teríamos de ter certezas que pelo menos chegaríamos a casa com todos e tudo o que saímos.

E sejamos realistas… O ideal mesmo era poder ver Marrocos inteiro, começando pelas cidades e passando pela zonas mais interessantes e inóspitas onde pudéssemos passar horas a andar de mota sem ver ninguém. Essa sim seria uma experiência em pleno. Mas passear num país distante sem conhecer ninguém , apenas com um mapa e uma bússola e carradas de boa vontade, ainda éramos quatro pessoas em quatro motas, sem carro de apoio, mecânicos, peças ou sequer pneus sobresselentes. Logo qualquer aventura mais efusiva teria de ser contida sob pena de nem sequer poder voltar para trás pela mesma mota que nos levou.

Já para não dizer que todos estávamos conscientes que no dia seguinte queríamos estar em Faro prontos para assistir ao concerto de Iron Maiden, comemorativo dos 30 anos de concentração e que sem dúvida alguma nenhum de nós iria querer perder.

Portanto na prática tínhamos aquele dia apenas. E mais nenhum…

Feitas as contas, estávamos em Vila Real de Santo António, a mais de 400 km de Tarifa em Espanha, onde podíamos apanhar o ferry que nos levaria a Marrocos. Seria impossível imaginar que embora só tívessemos um dia disponível, não iríamos por pé em África. Afinal, há muita gente que vive uma vida sem cruzar um continente. Ao menos essa meta moral seria alcançada.

Assim sendo toca a pegar nas motas e fazer viagem até Espanha, que tínhamos um ferry para apanhar.

Depois de algumas horas e quilómetros feitos por aquelas maravilhosas estradas espanholas, onde se andam quase 400 quilómetros de auto-estrada rodeados de paisagens magníificas de girassóis a perder de vista, separadores centrais adornados com flores de cores brancas e rubis intercaladas de três para um, campos e campos de animais de pasto, e quintas enormes, todas plantadas e a rejubilar de vida e cor (digo sinceramente que me deixou um sabor agridoce, saber que os nuestros hermanos vivam a crise tal como nós, não desistem de plantar e fazer render a terra, ao passo que nós deixamos vastidões de campos sem serem aproveitados) eis que vislumbramos ao longe o destino. África que se apresentava como uma sombra no horizonte, ainda muito distante, mas apenas a 35 minutos de barco. Dizem eles… (informo desde já que é mentira, pois fizemos uma viagem a todo o vapor e demoramos mais de 50 minutos só para cruzar o estreito).

Adquiridos os bilhetes, colocou-se desde logo no ar a questão. Onde iríamos dormir? Afinal embora o sonho era experimentar as tendas que trouxemos fazer um verdadeiro campismo selvagem no meio do deserto, isso seria impossível devido ao nosso tempo disponível, pelo que no máximo poderíamos procurar um hotel por lá para passar a noite e voltar no dia seguinte. Ainda eram apenas quatro horas da tarde, mas depois da travessia e da alfândega não iríamos ter propriamente muito tempo para procurarmos soluções que agradassem a todos. Outra hipótese seria ir a Marrocos e voltarmos no mesmo dia. Perguntamos a opinião ao agente de turismo espanhol que nos vendeu bilhetes e este respondeu-nos que deveríamos procurar uma cidade perto (30 km) chamada Asirah e lá teríamos hotel disponível. Referiu também que havia duas principais rotas. Uma litoral que seria a mais aconselhável e outra que levaria ao interior, mas que deveríamos evitar já que esta poderia ser muito perigosa. Não nego que esta escolha de palavras deixou alguns de nós meio em estado de “alerta”.

O certo é que a rota para o interior estava fora de questão desde o inicio, pois nem chegaríamos a lado nenhum em algumas horas. Optámos então por seguir a rota do litoral e pensar depois no local onde ficar, pois nada como ver para escolher. Sem compromissos, apenas vamos ver o que existe do outro lado.

Chegada a hora do barco, ainda estávamos nós a comer uns bocadillos de jámom com queso e umas cervezas perto do porto. Apressámo-nos para o ferry, na nossa inocência de não chegar atrasados e perder o barco, mas depois apercebemo-nos que este não era desde logo um exemplo de pontualidade. Já para não referir que todo o processo alfandegário demorou o seu tempo.

Chegado ao barco a primeira impressão passou pela quantidade de “mohammed”s que nos rodeavam. Ainda nem tínhamos saído da Europa e já estávamos em minoria. Começamos logo a perceber que estávamos a “jogar fora”.

Uma coisa era certa. Teríamos de ter cuidado com o que disséssemos ou fizéssemos, pois não estávamos na nossa terra e como tal qualquer situação de mau entendimento poderia descarrilar para algo mais perigoso num instante. Logo haveria que tentar limitar qualquer situação o mais possível. Algo que se provou ser difícil, desde o primeiro minuto que entramos no barco, pois começámos a perceber como a maneira que se atravessam rotundas em Tanger, é a maneira como se respeitam as filas para carimbar o passaporte ou outro fila qualquer, diga-se… quem chegar primeiro ou mostrar mais convicção aka loucura, passa à frente. E tentem discutir com alguém que só fala árabe em português… boa sorte…

O certo é que assim que desembarcamos em Tanger instalou-se o caos. Começou com as quase duas horas perdidas na alfândega onde fomos prontamente rodeados de “prestáveis” locais que se faziam passar de assistentes que num ápice nos arrancaram os passaportes da mão e nos pediram os documentos das motas e algum extra para podermos avançar com o processo. Aparentemente fomos logo caços na primeira armadilha colocada aos turistas que aqui entram. Tudo tem um preço. E aparentemente nunca é suficiente, pois cada vez vêm mais assistentes que nos dizem que falta preencher outro papel e para isso custa mais tanto.

Depois do trauma, veio a lição, ensinada por um bendito agente da lei, que deixo já aqui o meu reparo extremamente positivo a todos os policiais que conseguem manter a calma no meio de todo aquele pânico e conseguem repor a ordem e nos restituir a liberdade, e que nos alertou para que seguíssemos viagem e não ligássemos a nada nem déssemos dinheiro a ninguém, pois todo o serviço era gratuito. Pena já termos largado mais de 40 euros só nessa história…

Começou com um alerta. Mas uma pequena amostra comparado ao que veio a seguir. Tanger era simplesmente massivo. Enorme, cheio de gente, confuso, barulhento, sem regras, com uma experiência de condução de uma qualquer super metrópole numa atarefada hora de ponta aliada ao caos de milhares de pessoas que a qualquer momento apareciam de todos os lados, fosse a pé, de bicicleta, carro, quads, triciclos e misturada com uma pitada de ignorância/negligência/desrespeito das comuns regras de transito … tudo o que nos pudéssemos lembrar era certo de encontrar ao virar de qualquer esquina em Tanger. A cidade era de si enorme, cheia de grandes empreendimentos imobiliários e parecia estar em contínua expansão, pois por todo o lado se viam grandes blocos de apartamentos em construção ou em demolição para dar lugar a outros. Muitos deles aparentavam estar inclusive abandonados há anos, ainda semi acabados. Uma completa loucura de cimento rodeado de mato e terreno selvagem. A cidade em si estava apinhada de pessoas. Em todo o lado se viam pessoas a pé, em cafés, à janela, sentados nas ombreiras das portas, debaixo de uma sombra, encostados aos carros, sentados na beira da estrada, a conversar no meio da estrada… não sei como dizer isto. Parecia que para qualquer lado que se olhasse víamos alguém com algo a fazer alguma coisa. Até uma manifestação conseguimos ver. Felizmente apenas empunhavam bandeiras…

Tentamos fugir do caos da cidade, rumar a Asirah para procurar o hotel que nos tinha sido recomendado. Mas logo aí se colocaram problemas. O GPS de serviço até então tinha-se avariado com o calor ainda em Espanha, mas também não seria por aí, afinal este não tinha mapas de Marrocos. Restava um mapa em papel e umas placas escritas em Árabe que nenhum de nós sabia o que diziam. Depois de um quantos desvios errados começamos a perceber o quanto nos encontramos habituados a estas novas tecnologias e ao encontrar uma falésia que dava para uma praia, paramos para fazer um ponto de situação.

Tínhamos chegado a Marrocos. O nosso objectivo principal estava cumprido. No entanto havia um sabor agridoce, pois o nosso verdadeiro objectivo era a calma e o vazio do deserto, não uma confusão capaz de deixar qualquer capital Europeia em hora de ponta a parecer um passeio de meninos à beira mar. Para passar a noite em Marrocos teríamos de procurar um hotel que deixasse guardar as motas em local seguro, pois seria loucura deixá-las sozinhas durante a noite, mas sem local definido tínhamos de decidir se iríamos arriscar passar o fim de tarde à procura ou tentar apanhar o último Ferry, que estava para sair e era a última hipótese de tentar voltar nesse mesmo dia.

Não sei se seria o trauma ainda sentido pelos agentes alfandegários, se pelo stress induzido pela condução naquelas estradas que nem passeios tinham, se pela quantidade avassaladora de pessoas que constantemente nos rodeavam ou da desconfiança natural que temos em qualquer ambiente que nos é estranho, ou se pela própria cidade não ser assim tão cativante. Ou direi mesmo bonita. O certo é que nunca uma decisão se tornou tão unânime como quando todos colocamos o descanso nas motas naquela escarpa à beira mar. Todos nós preferimos voltar a Espanha e dormir por lá. Era mais calmo, era mais sossegado, era mais… mais férias.

Assim que dissemos isto, degulamos uma garrafa de água cada e voltamos para o ferry, sabendo que para isso ainda teríamos de enfrentar todo o mesmo caos do transito, da cidade, da multidão, da alfandega, dos assistentes… Mas enfrentamos com outra atitude. Afinal em Roma sê romano. Assumimos a condução mais agressiva de hora de ponta, aproveitando qualquer buraquinho para ziguezaguear entre os carros para vencer o semáforo que estava para fechar. Mas uma coisa é certa. Encontramos o ferry mais rápido que este teve tempo para sair. E coitados dos “assistentes” que se cruzassem à nossa frente.

Claro que assim que os policiais que nos tinham visto a entrar estranharam estarmos a voltar tão cedo, o que levou a alguns comentários relativamente ao “cabedal” do Pedro e o sentimento avassalador sentido perante tantas pessoas pequeninas… Ora aí está mais uma prova que tamanho não é documento. :D

Depois de sair do ferry encontramos um hotel a 4 km de Tarifa com um pequeno anexo com habitações duplas com lugarzinho para as motas, rodeados do precioso sossego esperado ao final de um dia, e com uma reserva inesgotável de presunto, queijo e cerveja. Pois… essa era outra… se lá tivéssemos ficado provavelmente teríamos estado a jantar banana grelhada e chá… Definitivamente foi uma boa escolha.


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